Nota de Repúdio da Sociedade Brasileira de Lógica (SBL)

29/04/2019 10:30

Nota de repúdio da Sociedade Brasileira de Lógica às declarações de
Sua Excelência, Presidente da República Federativa do Brasil, Jair
Bolsonaro, e Sua Excelência, Ministro de Estado da Educação, Abraham
Weintraub

Em apoio à ANPOF – Associação Nacional de Pós-Graduação em
Filosofia.

Em apoio à SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, ao
movimento #CiênciaOcupaBrasília e à mobilização nacional de 8 e 9
de maio de 2019 contra os cortes orçamentários em Ciência, Tecnologia
e Informação.

A Sociedade Brasileira de Lógica (SBL) repudia veementemente as
recentes declarações, por parte de Sua Excelência, o Presidente Jair
Bolsonaro, e de S. Exa., o Ministro da Educação Abraham Weintraub, a
respeito do ensino e da pesquisa nas humanidades, particularmente a
filosofia e a sociologia.

As declarações são desastrosas e ofensivas não só aos profissionais
dessas áreas, como também deslegitimam toda a área das humanidades em
todos os níveis da educação brasileira, sem excetuar o ensino mais
básico da alfabetização mais chã, explicitamente mencionada por Sua
Excelência o Presidente – como se fosse possível aprender a ler e a
contar sem reflexão e autoconsciência. Chegando mesmo a dizer que
apenas ricos deveriam se dedicar aos estudos filosóficos, S. Exa. o
Ministro junta-se à Sua Excelência o Presidente na repetição de
preconceitos rasos, caracterizados por um utilitarismo de vista curta e
um atroz elitismo. Dos muitos problemas passíveis de ser levantados,
ressaltamos dois erros nessas declarações.

O primeiro erro é supor que só tem valor o que é imediatamente útil.
Como filosofia e sociologia não trazem “retorno de fato”, devem ser
consideradas inúteis e, portanto, sem qualquer valor. Ora, a verdade é
que esse discurso trai uma preocupação exagerada com o que é
desqualificado – se filosofia e sociologia nada produzem de fato, por
que então atacá-las? Se são inúteis e desprovidas de todo valor, por
que interessariam justamente aos ricos? O ataque parece revelar
justamente o oposto do que está dito: filosofia e sociologia realmente
são valiosíssimas, a ponto de merecerem menção direta, e, por isso
mesmo, devem ser eliminadas do currículo, ou reduzidas ao mínimo
disponível apenas às classes mais favorecidas. Cabe perguntar,
portanto, se as palavras de Sua Excelência o Presidente e de S. Exa. o
Ministro revelam o que seus enunciadores pensam ou se há algo que
pensam e não manifestam abertamente.

O segundo erro, apoiado numa rígida e insustentável separação entre
teoria e prática, é tão grave quanto o primeiro. Se o valor de uma
área de estudos é reduzido exclusivamente às suas aplicações e
resultados imediatos, então a própria lógica do processo de conhecer
é invertida: raciocinamos para chegar às conclusões, para depois
buscar descobrir o que fazer com elas, e não o contrário. Se as
aplicações práticas e os resultados imediatos tornam-se critérios
normativos para avaliar o conhecimento, então podemos deixar de
raciocinar, basta aplicar fórmulas já conhecidas. Por que pensar, se
basta só repetir? “Trabalhe, não pense”, diz um lema de assujeitamento
já conhecido.

É claro, seria ingenuidade supor que apenas a filosofia e a sociologia
são capazes de produzir pensamento “consciente” ou “crítico”, da mesma
forma como seria ingênuo tentar defender sua “utilidade”. O
conhecimento, em qualquer área, é sobretudo inútil, contudo tão
somente no sentido de que seu produto maior não é nada de imediato e
material, mas sim a autonomia de pensamento e a criticidade de
consciência, atingidos apenas no contato com o mundo real e na
apropriação do saber produzido por outras pessoas, em todas as áreas.

A esse respeito, é impossível esquecer que o lema da nossa bandeira é
uma adaptação de outro, de Auguste Comte: “O amor como princípio, a
ordem como base e o progresso como meta”. Isso porque a Escola Militar
do Rio de Janeiro, já durante o século XIX, foi o principal centro de
ensino sistemático da doutrina de Comte, o positivismo. Com isso, toda
uma geração de militares brasileiros tornou-se positivista, a mesma
geração que, em 1889, protagonizaria a Proclamação da República. De
fato, Comte tornou-se filósofo após formar-se em engenharia e ser
professor de matemática. Seu positivismo continha uma classificação
das ciências que exerceu forte influência sobre a sociologia. Então,
apesar de descartarmos do lema da bandeira justamente o amor, parece que
a filosofia e a sociologia, no final das contas, são bem mais
importantes para o país do que as últimas declarações de Sua
Excelência o Presidente e de S. Exa. o Ministro admitem.

Muito embora possa não saber, quem pensa sempre filosofa, e quem
reflete sobre as condições práticas de sua profissão no contexto da
comunidade em que vive sempre pensa sociologicamente. A filosofia e a
sociologia agregam, sim, método e autoconsciência ao impulso da
curiosidade própria do querer saber que é a vida do conhecimento. Seus
questionamentos são tão frutíferos quanto inevitáveis, e esse parece
ser seu maior perigo. Com efeito, desde Sócrates até hoje, perguntar
por que devemos preferir as respostas às perguntas acaba por
desestabilizar crenças assentadas e acríticas.

Esse é o questionamento que os poderosos – em todas as épocas, em
todos os lugares – costumam não tolerar e que é nossa
responsabilidade, como cidadãos e como membros da comunidade
acadêmica-científica brasileira, manter vivo.

Diretoria 2017-2019, 26 de Abril de 2019.


Sociedade Brasileira de Lógica
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